quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Presente.


Foto de Isa Lu.


Eu escrevi esse texto para o concurso Eu Faço A Megazine, do Globo. Depois eu vi que tinha ultrapassado o limite de caracteres. Enviei para eles do mesmo jeito. Aí quis postar aqui porque, poxa.



Tirou a poeira do parapeito com mãos de quem acaricia peles.

Olhou a rua, olhou para cima, virou o corpo - cheiro forte de canela –, trocou a música, andou em frente, ficou descalça e avidamente enfiou os braços nas almofadas que descansavam tão santas sobre o sofá. Como que para contrariar tamanha placidez e beatitude, deitou-se da forma mais lasciva que pôde, provocando a mobília com sua carne de vida-por-vir.

Eu não sei deitar como ela deita.

Por isso não: ela não sabe fechar os olhos. De logo, tenta esperar a vontade de dormir vencer o corpo. Mas o corpo quer estar olhante. Então ela força as pálpebras a escurecerem o mundo, mas isso dói. Olhos ficam abertos, vendo o que não miram. Cheiro forte de canela.

No aniversário de sete anos, pediu para fazer um curso de astronauta. Ganhou um livro com fotos do espaço e um par de pantufas. Lembra-se de folhear as imagens de estrelas enquanto assistia ao irmão mais velho rodar pião. E um pião era um planeta, e muitos piões eram galáxias.

Aos nove, pediu um gravador. Ganhou um diário. Aos dez, ganhou patins. Aos onze, pediu cartas, cartas e cartas, de quem fosse, de onde estivesse – para que soubesse como é ganhar palavras – e recebeu. Aos doze, pediu o Mundo e ganhou o gato (lá no fundo, preferiu). Aos treze, sorvete de flocos. Aos quatorze quis cadernos, muitos.
E aos quinze não soube o que pedir e recebeu olhares.
(Não soube o que pedir para os pais, mas só de si, do vazio do quarto, pediu que nunca lhe faltassem saúde, comida, lápis, papel e amores. Ganhou seus próprios olhos arregalados ao notar o monte de tudo que a esperava. Um Tudo a ser tocado, sentido e guardado. Ganhou janelas mais abertas e céus sem nuvens, com esperança de chuva).

Além disso, ganhou binóculos.

Dez anos depois, ganhou flores. E o cheiro doce dos buquês parecia tentar amansar a mente aguda dos vinte e cinco. Sempre tivera cabeça de caleidoscópio. Era em voltas de cor e luz que enxergava o dia. E ia bem assim.

O gato começou a ronronar no meio da barriga da que pensa. Passando de leve a mão em seu pêlo, ela tenta avisá-lo:
- E eu ainda nem sei rodar pião.

Mas ele não liga. Não com esse cheiro forte de canela.

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