quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

No ar.


Aconteceu quando ele deitou para descansar a cabeça vazia. O nível de conforto fornecido pelo banco gelado e ainda úmido de orvalho era perfeito; Não queria plumas, queria a coluna reta. E a cabeça um pouco mais alta que o resto do corpo, é verdade. A fim de preservar a perfeição momentânea da posição, ajeitou o jornal meio embolado acima da nuca. Pôde, então, respirar. Inspirou profundamente flor e vida no ar matutino e sentiu uma pontada do lado esquerdo. Levou a mão à altura da cintura e encontrou a farpa. Ainda não tinha se soltado do banco. Puxou-o com certa firmeza e o pedaço de madeira parou de lhe perturbar a pele. Sentiu o resto do banco à procura de novas farpas. Tendo tocado apenas o áspero natural da madeira, voltou à posição de descanso. Inspirou fundo mais uma vez, procurando tecer dentro de si, através do ato de respirar, um infinito e sem peso cobertor de idéias para vir. Idéias iminentes são o produto da respiração da mente que deita em bancos. Há nos bancos de praça espécie de fluido mágico que acende no ser a vontade de criar e construir ao mesmo tempo em que mantém o mesmo ser cheio de vontade de continuar lá, vendo o mundo acontecer. Provavelmente é por isso que os pombos passam tanto tempo em praças e bancos e bancos de praças. Sabe-se lá o mundo que um pombo constrói ao balançar a cabeça enquanto se aproveita do elixir criativo que lhe é oferecido o dia inteiro. Puxa, um pombo. Ao ouvir os arrulhos, ele abriu os olhos de leve e pôde ver a ave ciscando alguns dos sonhos caídos dos bolsos de gente que passa rápido demais e, por descuido ou por vontade, deixa parte do que queria ser junto dos passos dados. Ficou observando a pequena criatura que se movimentava por pequenos vôos de um lado para o outro no círculo de areia e fechou os olhos de novo. Então os gritos começaram. Galinha da cidade! E risadas. Não resistiu, abriu-os. Viu um menino perseguindo um pombo marrom e sentou-se de lado para observar o fotógrafo e o fotografado. O garoto ia trás do bicho, segurando uma máquina daquelas com filme e parecia decidido a registrar cada passo que seu alvo dava. Será que queria fotos seguidas, como que para capturar o movimento? Não sei. Veio uma menina se encontrar com ele. A menina ri, um sorriso fácil e solto de sol. É bela. Segura o rapaz pela mão e, rindo, o convence a largar a galinha da cidade e sua caça esportiva. Ele parece esperar que nasça uma flor de cada sorriso dela, tamanha é a ternura que olha para o seu rosto. A menina parece tentar retribuir o carinho tão sincero com mais sorrisos, mais palavras, mais olhares, mais gestos. Ele inteiramente dela, ela querendo poder ser inteiramente dele. Vão os quatro embora: ele, ela, o pombo e o amor. O homem deitou no banco, olhou para o céu claro de início de manhã e viu borboletas e nuvens. Imaginava que os insetos eram gigantes e voavam na mesma altura que os flocos brancos do azul.
Então aconteceu. Lembrou-se
- Preciso amar.
E se levantou e foi.
Obs: Agradeço a Caio Pires pela foto e pela manhã.

2 comentários:

  1. Seu pombo foi minha madeleine, aquele biscoitinho do livro do Proust que trouxe memórias involuntárias.
    Acabei me lembrando de um filme que vi há algum tempo, Os Miseráveis, uma adaptação do romance do Victor Hugo. Na cena final do filme o protagonista corre na direção um bando de pombos, que estavam cuidando da própria vida às margens do Sena, e todos eles levantam voo. Dentro do contexto significava algo relacionado à liberdade.

    Depois o efeito continuou, comi a segunda madeleine do seu texto: "preciso amar". Acabei me lembrando de uma entrevista que fiz com a Tatiana(sim, a professora de português) para um trabalho de inglês, a única pergunta da entrevista foi o que era o amor na visão dela. (por mais estranho e aleatório que pareça foi extamente isso).

    A resposta dela foi algo muito interessante, falando do amor como algo que transcendia pessoas, o amor como algo generalizado, um amor abstrato, sem um objeto físico.

    Daí acabei juntando uma coisa com a outra e cheguei ao amor à liberdade, mas, como estava no seu blog, não seria uma liberdade qualquer. Era uma liberdade de ser.

    Ser (palavra a ser definida à critério de quem vier a ler isso) é um termo muito recorrente na sua escrita e eu vejo, depois de toda essa reminiscência o "amor em ser", ou algo que eu ainda não consegui entender, muito menos explicar, tão presente nisso tudo.

    Como diriam os franceses com suas madeleines e seus filmes, "à quoi ça sert, l'amour?"

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  2. Galinha da Cidade \õ/

    Gostei muito desse texto =D

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