quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ulakapata. - Um.


Tenho cinqüenta mil histórias inacabadas. Tenho vários personagens não-construídos, mas que esperam para nascer. Tenho incontáveis palavras a serem usadas. Tenho mil frases de efeito e orações pensadas. Coleciono enredos para livros. Ambientes de contos me vêm o tempo todo. Vivo em meio um incessante fluxo de idéias que não são. Meus estudos não rendem, meus trabalhos não continuam, minhas conversas perdem o foco, meus relacionamentos perdem o sentido, minha vida perde o vigor de ser – contudo, continuo existindo - , meus amores perdem a vontade, minhas amizades perdem o contato, meus projetos perdem a finalidade, meus ônibus perdem meu ponto, minhas receitas desandam, minhas frases param no meio, meus apoios desistem de mim, minhas chances não são aproveitadas, minhas indiretas são mal interpretadas, minhas diretas são negadas, minhas vontades são ignoradas (ou pior: entendidas), minha dor pouco some, minha alegria se dá superficialmente, minha solidão é acompanhada, minha companhia é só de mim, sei de pouco, falo demais, vivo frustrada por perceber que o cada um tem para viver é a própria vida, ando torto e troco rimas e, enquanto ia contra o vento, de passo curto e trocado, na rua cheirando ao carrinho de flor que já ia longe espalhando sumo de rosa e margarida no chão brilhante do sol, ele me passou, carregando um monte de si. Quando olhei em seus olhos, me assustei com o quanto que ele era. Nunca havia visto ninguém se ser tão sem pudor, tão sem tentar esconder. A mim - que na minha vontade tão forte de me ser inteira, já mostrava timidamente uma pequena parte de mim no meu olhar de brilho mudo - aquele olhar trouxe espanto ao brilhar tão forte e tão de cima, com tanta verdade e clareza sobre seu senhor. Eram olhos que diziam um perfume. Respirei bem fundo e entrou em mim todo o cheiro de certeza que emanava dele. E veio canela com limão e lavanda e café e flor e menta e incenso e fruta e sol e mato e água. Eu senti o cheiro da água. E do sol. E de tudo misturado e tudo nele, como era para ser. Como só podia ser. E podia ser porque era ele.

E ali eu entendi que tinha uma história. E que a minha história não era mais só minha, porque eu mesma não era mais só minha. Ao passar por aquela pessoa e cruzar com o olhar mais real que já tinha visto, eu automaticamente me doei. Dividi-me. Foi ali que me veio a primeira certeza: Eu era. Depois de anos, depois de centenas de cartas a mim tentando me achar, eu me estabeleci. Eu era. Eu sem dúvida era, porque eu já tinha uma segunda certeza: Eu era dele. Eu era daquele ser, eu possuía àquele olhar. Com todos os meus defeitos, com tudo meu que era incompleto, com tudo que havia por terminar, eu pertencia a alguém. E esse alguém não precisou sequer me aceitar, pois no exato instante em que nos vimos, já nos pertencíamos. Não era algo a ser aceito ou não: Era, somente, como o vento é e a terra é. Uma certeza tão forte se estabeleceu onde sempre esteve e éramos juntos. Nós três: eu, ele, e nossa certeza - que ele só sabia que existia justamente por existir – de que estávamos dentro um do outro e de lá não sairíamos. Nos levamos para casa. Parei no meio da rua e fiquei acompanhando-o com o olhar enquanto ia certo por uma colorida galeria. Não me preocupei em segui-lo. Sabia que não precisava.

Cheguei ao meu apartamento sozinha de corpo, mas há muito já havia entendido que jamais estaria completamente só. “Tenho alguém que me tem também, que me é e que me quer ao mesmo tempo em que eu o sou e o quero”. Passei alguns minutos deitada no chão da sala, absorvendo minha nova - e permanente – situação de maravilhoso e certo amor. Até que virei os olhos para olhar a janela e avistei minha estante. Uma das prateleiras estava totalmente preenchida por rascunhos, um mar de coisas interrompidas e não continuadas. Foi então que eu percebi a história que tinha nas mãos e a delicadeza de sua situação. Acabara de nascer – ou sempre estivera lá, ainda não havia me decidido – e já carregava o peso de ser responsável por todas as outras histórias, pelo resto de minha vida. Tudo derivaria dela, pois ela já era meu tudo. Olhei de novo o incompleto de minha vida que me encarava desafiador da estante. Senti vergonha pela falta de continuidade e medo pela nova tarefa que brotara em mim.

Mas essa história eu vou terminar.


(Continua)

2 comentários:

  1. Que coisa linda, Clara! *-*

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  2. Linda, muito linda mesmo.
    Adoro ler o que vc escreve.
    Já disse que acredito muito em tudo isso aqui?

    Clara,
    Te amo.

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